Uma sociedade sem caridade está condenada ao fracasso – 01/05/2025 – Opinião

Em uma sala dechada, um grupo de pessoas jovens mexe em caixas com donativos para víitimas da guerra

Todos os anos na Páscoa, os cristãos recordam como, na Última Ceia, na véspera da crucificação de Jesus, a esperança parecia estar perdida. A maioria dos amigos mais próximos de Jesus estava prestes a rejeitá-lo e a abandoná-lo. Tudo o que se avizinhava era a tortura e uma morte hedionda.

Mas, naquele momento de desespero, Jesus tornou-se uma dádiva para todos, dando pão aos discípulos e dizendo: “Isto é o meu corpo, que será entregue por vós”. Este ato de esperança prolongou-se até à manhã de Páscoa, quando a vida triunfou sobre a morte, o amor sobre o ódio e a doação divina sobre a ganância humana.

Enquanto choramos a morte do papa Francisco, a nossa esperança após a Páscoa é que mesmo os mais pequenos atos de bondade podem dar frutos para além da nossa imaginação. Recordemos que, perante 5.000 pessoas famintas, os discípulos só conseguiram juntar cinco pães e dois peixes. Mas foi o suficiente para alimentar toda a gente, com a bênção do Senhor da colheita.

O nosso mundo é atormentado pela pobreza e pela violência —problemas que parecem impossíveis de resolver— numa altura em que a ordem global do pós-guerra corre o risco de se desmoronar. As instituições de caridade cristãs —Catholic Relief Services, World Vision, Samaritan’s Purse e Jesuit Refugee Service, entre muitas outras— estão a desempenhar um papel admirável no alívio desse sofrimento. Quando tantas pessoas não têm esperança no futuro, os esforços dessas instituições de caridade nos Estados Unidos e em nível mundial são fundamentais para a nossa fé.

Esse papel tornar-se-á ainda mais importante nos próximos anos, à medida que as principais economias reduzem os seus orçamentos para a ajuda externa, infligindo danos profundos às pessoas vulneráveis, cada uma delas feita à imagem de Deus. A nova iniciativa de acompanhamento digital da Universidade de Boston estima que o congelamento quase total do financiamento e da programação da ajuda externa por parte dos EUA, desde janeiro, já resultou na morte de mais de 68 mil adultos e mais de 142 mil crianças.

O judaísmo e o islamismo também insistem que a doação de caridade é essencial para uma vida de fé, e não um extra opcional. A palavra “caridade” vem do latim “caritas”, que significa “amor”. Nesse sentido, a caridade exprime o que é fundamental para a nossa dignidade humana: a capacidade de dar livremente e de receber donativos sem vergonha.

É verdade que algumas ajudas podem ser paternalistas e humilhantes, aprisionando as pessoas numa cultura de dependência. Mas não é assim que a maioria dessas instituições de caridade funciona. Em vez disso, reconhecem que os mais vulneráveis e frágeis entre nós são testemunhas de aspectos frequentemente esquecidos da dignidade humana: resiliência, solidariedade, dependência mútua, confiança em Deus e no outro e gratidão. Jesus diz que quem estende a mão a “um destes meus irmãos mais pequeninos” é a ele que estão a estender.

Virar as costas aos mais pobres é rejeitar Deus. Acima de tudo, a ajuda sustenta a vida familiar, principalmente as mulheres e as crianças a quem deveria ser impensável abandonar. Nikolai Berdyaev, o filósofo existencialista russo, escreveu: “O pão para mim é uma questão material; o pão para o meu próximo é uma questão espiritual”. Para os cristãos, o ato máximo de doação é demonstrado no derramamento do sangue de Cristo na cruz. Para todos nós, quer sejamos religiosos ou não, a caridade é o sangue que dá vida, que circula no corpo da sociedade, alimentando a vida com a sua bondade.

Nesse contexto, as recentes notícias publicadas na Reuters, na Bloomberg, no New York Times e no Financial Times, segundo as quais o governo dos Estados Unidos poderá impor novas restrições aos donativos de caridade, são profundamente preocupantes. A capacidade de as instituições de caridade, os financiadores e as filantropias operarem e prestarem apoio sem entraves nos EUA e em nível mundial é vital não só para aqueles que beneficiam da ajuda, mas também para aqueles que a dão. Uma sociedade em que as doações de caridade são deliberadamente restringidas estará condenada à própria pobreza, tanto financeira como moral.

O papa Francisco dedicou a sua vida a servir os pobres e a combater a injustiça. Vale a pena refletir sobre a sua última mensagem pascal “Urbi et Orbi”: “Apelo a todos aqueles que ocupam posições de responsabilidade política no nosso mundo para que não cedam à lógica do medo, que só leva ao isolamento dos outros, mas que usem os recursos disponíveis para ajudar os necessitados, para combater a fome e para encorajar iniciativas que promovam o desenvolvimento”.

A esperança, a fé e a caridade são as virtudes fundamentais do cristianismo. Embora muitos de nós estivéssemos a ficar sem esperança nesta Páscoa, a nossa fé permanece forte, tal como deve permanecer o nosso compromisso comum com a caridade.

TENDÊNCIAS / DEBATES

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Fonte ==> Folha SP

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