The New York Times
No nível mais básico, “Tubarão” é um filme sobre um implacável tubarão branco, aterrorizando os moradores de uma comunidade litorânea. Foi a fera de dentes afiados que adornou a avalanche de camisetas e outros produtos quando o filme foi lançado há 50 anos, estreando em junho de 1975 e praticamente criando o que consideramos como o blockbuster moderno.
Mas o novo documentário da National Geographic “Tubarão: Por Trás do Clássico”, disponível no Disney+, deixa uma coisa tão clara quanto um dia de verão na Ilha Amity: “Tubarão” é principalmente sobre pessoas imperfeitas, não sobre um peixe assustador. O verdadeiro vilão não é o tubarão, que, afinal, ficaria feliz em ser deixado em paz.
O vilão é o ganancioso prefeito (Murray Hamilton), que insiste em manter as praias abertas durante a alta temporada em vez de fechá-las por segurança. Os três heróis —o chefe de polícia Brody (Roy Scheider), o capitão do mar Quint (Robert Shaw) e o oceanógrafo Hooper (Richard Dreyfuss)— formam um triângulo cuidadosamente desenhado, escrito com uma profundidade que tem escapado à maioria dos espetáculos pós-“Tubarão” até hoje.
Para Laurent Bouzereau, o autor e cineasta que dirigiu “Tubarão: Por Trás do Clássico”, foram os toques humanos que tornaram “Tubarão” um clássico, e que guiaram um jovem Steven Spielberg enquanto ele transformava o best-seller de Peter Benchley em um filme de sucesso estrondoso.
“A humanidade da abordagem de Steven para tudo em sua carreira começou a emergir em um filme como ‘Tubarão’, onde se trata muito mais da reação das pessoas a uma crise do que da própria crise”, disse Bouzereau em uma entrevista em vídeo. “Você sente que conhece essas pessoas, e todas elas se destacam.”
Você pode não imaginar Cameron Crowe, conhecido por comédias dramáticas como “Jerry Maguire” e “Quase Famosos”, como um aficionado por “Tubarão”. Mas lá está ele em “Tubarão: Por Trás do Clássico”, ao lado de nomes como James Cameron, Jordan Peele, Guillermo del Toro e outros pesos-pesados, incluindo o próprio Spielberg.
“Cada personagem tem um pequeno arco, uma pequena história”, diz Crowe no documentário. “Então, quando eles entram na cena, você se interessa por eles, e quando eles saem da cena, você sente falta deles.”
Ele elaborou em uma entrevista em vídeo: “É totalmente sobre as pessoas. É um filme rico em personagens disfarçado de épico de ação”.
Entre essas pessoas, é claro, está o heroico e desajustado trio a bordo do Orca. Brody é o policial urbano transplantado que odeia a água; Quint, o rude, bombástico, mas estranhamente poético marinheiro; e Hooper, o educado e sarcástico especialista em tubarões, não se suportam, mas acabam desenvolvendo um respeito mútuo relutante (o documentário sugere que Shaw e Dreyfuss também não se davam bem).
A ênfase no personagem se estendeu também ao visual de “Tubarão” —especialmente na segunda metade do filme, quando Brody, Quint e Hooper partem para o mar aberto em busca de sua presa. O designer de produção, Joe Alves, que também aparece no documentário, lembrou da ordem de Spielberg para nunca mostrar outras pessoas ou barcos depois que a caçada começou.
“Queríamos os três caras isolados”, disse Alves em uma entrevista por telefone. “Três caras com personalidades totalmente diferentes e este grande tubarão, que Steven não queria usar em excesso. É por isso que funcionou.”
Ele lembrou que Spielberg se recusava a filmar quando qualquer outro barco estava visível na água, uma postura que não agradou aos executivos da Universal, especialmente quando o filme ultrapassou o cronograma e o orçamento.
O que nos leva ao outro personagem principal na história de Bouzereau: o próprio Spielberg. Como mostra “Tubarão: Por Trás do Clássico”, o futuro magnata estava em pânico enquanto a imprensa devorava relatos das dificuldades da produção como iscas na água. Dúvidas extremas surgiram.
Ataques de pânico se seguiram —suores noturnos, pesadelos, tremores incontroláveis. Spielberg tinha apenas dois filmes em seu currículo, o telefilme “Encurralado” (1971) e “A Louca Escapada” (1974). Sua carreira estava em jogo. “Eu estava aterrorizado com a possibilidade de ser demitido”, ele diz no documentário.
Para Bouzereau, cujos documentários anteriores incluem “Faye: Entre Luzes e Sombras” e “A Música de John Williams” (ambos de 2024), as lutas e o triunfo de Spielberg forneceram uma linha condutora importante em “Tubarão: Por Trás do Clássico”, pelo menos tão importante quanto a aventura na água.
“Eu queria explorar a história humana dele fazendo este filme diante de um grande desafio no início de sua carreira”, disse Bouzereau. “Enquanto o entrevistava, rapidamente encontrei um ponto de entrada que não era sobre o aspecto mecânico, ou o tubarão mecânico. Era mais sobre alguém superando as adversidades.”
Apropriadamente, os tubarões —as três versões mecânicas e algumas inserções do real— raramente são vistos em “Tubarão”. Isso se deve parcialmente a problemas técnicos bem conhecidos, mas também por design.
Os monstros que não conseguimos ver claramente podem ser os mais assustadores de todos. E, como Spielberg diz no documentário, “sem as pessoas, você não se importaria nem um pouco com o tubarão”.
Fonte ==> Folha SP