Mesmo aconselhado a “baixar o tom” em meio ao vendaval gerado pelo tarifaço americano de 50% e sob ameaça de novas sanções, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não tem hesitado em provocar o republicano Donald Trump, retomando o tema de uma alternativa ao dólar nas transações comerciais internacionais. Os resultados, segundo analistas ouvidos pela Gazeta do Povo, são imprevisíveis. Mas virão.
Em pronunciamento durante a posse do novo presidente do PT, Edinho Silva, no domingo (3), Lula ressaltou a importância de ampliar a autonomia brasileira diante do domínio da moeda americana. “Eu não vou abrir mão de achar que a gente precisa procurar construir uma moeda alternativa para que a gente possa negociar com os outros países”, afirmou.
A discussão – que já ocorre há algum tempo no âmbito do Brics, bloco antagônico aos Estados Unidos e que tem em Lula seu principal vocalizador – está entre os principais motivos da ofensiva de Donald Trump ao Brasil. O país é considerado porta-voz de um dos interesses estratégicos do grupo, liderado pela China.
Trump vê na busca por uma moeda alternativa ao dólar uma ameaça direta à hegemonia econômica dos EUA e já reagiu com veemência à iniciativa: “Não há chance de os Brics substituírem o dólar no comércio internacional ou em qualquer outro lugar, e qualquer país que tentar deve dizer ‘olá’ às tarifas e ‘adeus’ aos EUA”, afirmou.
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Nesse contexto, as falas recentes de Lula soam como inoportunas, em um momento especialmente delicado. Para Mauro Rochlin, da FGV-SP, a insistência no tema não tem racionalidade do ponto de vista econômico. “No curto prazo, isso [uma moeda alternativa] não vai acontecer”, diz. “Insistir nesse discurso agora, no calor dos acontecimentos, é contraproducente e atrapalha.”
O economista Simão Silber, professor da Universidade de São Paulo (USP), destaca: “O uso de outras moedas nas transações internacionais, sejam comerciais ou financeiras, é muito difícil”, afirma. “Por tradição, os contratos já são gravados em dólar. Mudar isso no curto prazo é impensável.”
Para ele, as “bravatas” de Lula chegam a “beirar a insanidade”. “[O Brasil] levou o maior imposto de importação do planeta, né? Cinquenta por cento. Uma parte muito grande de produtos brasileiros não pode mais entrar nos Estados Unidos. Esse é o preço que a gente pagou por essa besteira que foi dita”, critica.
Os economistas alertam que isso pode ser só o começo. Com a elevação da temperatura política e as tentativas frustradas do governo de negociação, a estratégia deve sair ainda mais cara. “É uma narrativa para jogar para a plateia, para o público interno”, diz Rochlin. “E terá consequências.”
Dólar é símbolo de poder geopolítico
Para além de Trump e tarifas, ofuscar o protagonismo da moeda americana no cenário internacional se traduz numa tarefa praticamente inexequível para qualquer país na atualidade. O dólar não é apenas uma unidade monetária — é uma das principais ferramentas de poder geopolítico dos Estados Unidos, defendida com firmeza por governos democratas e republicanos.
A moeda americana domina cerca de 70% das transações internacionais, compõe a maior parte das reservas cambiais dos países, controla os principais sistemas de pagamento globais, como o Swift (que permite transações entre países), e possibilita a Washington aplicar sanções econômicas, congelar ativos e monitorar ou bloquear fluxos financeiros em escala mundial.
Com isso, os Estados Unidos mantêm uma expressiva vantagem econômica. Sua moeda é aceita internacionalmente, e o país pode pagar pelas importações com o próprio dólar.
“Ele recebe importação de bens e serviços e paga em ‘papel pintado’”, diz Silber. Esse privilégio, no entanto, não é fruto do acaso, mas sim do lastro conquistado pela maior economia do planeta, avalia o economista. “Eles conquistaram esse direito”, afirma. “O lastro da moeda é o PIB [Produto Interno Bruto].”
Hoje, o PIB dos Estados Unidos ultrapassa os US$ 28 trilhões, 12,5 vezes maior que o do Brasil e 1,55 vez maior que o da China, segundo dados do Fundo Monetário Internacional (FMI). “Ou seja, a adoção de uma moeda como padrão global não é aleatória”.
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Do padrão ouro ao dólar fiduciário
Desde o final do século 19, existia um padrão monetário internacional lastreado em ouro — ou seja, as moedas nacionais tinham seu valor atrelado às reservas. “Isso fazia com que fossem intercambiáveis, porque todas tinham o mesmo lastro”, explica Mauro Rochlin.
O modelo ruiu com a Primeira Guerra Mundial, e tentativas posteriores de restauração, especialmente durante a Grande Depressão, fracassaram. O sistema sofreu pressões, já que os países buscavam competitividade por meio da desvalorização cambial. Em 1944, a Conferência de Bretton Woods marcou uma nova ordem econômica internacional.
“Naquela ocasião, os países suspenderam a conversão de suas moedas em ouro, exceto os Estados Unidos, que mantiveram o dólar conversível em ouro”, diz o economista. Assim, o câmbio entre os países foi fixado em relação ao dólar, já que os EUA representavam cerca de 25% do PIB mundial, eram a maior economia do mundo disparado e o principal parceiro comercial global.”
Esse arranjo durou até 1973, quando o presidente Nixon anunciou o fim da conversibilidade em ouro, para evitar uma supervalorização da moeda que prejudicava as importações americanas e beneficiava os europeus. Desde então, o dólar tornou-se uma moeda fiduciária, baseada na confiança no tamanho e na força da economia americana. Dois anos depois, o mundo adotou o regime de câmbio flutuante.
Por que não se troca o dólar por outra moeda?
Para uma moeda assumir o papel do dólar, seria necessário que a economia do país emissor tivesse dimensão semelhante à dos Estados Unidos, que seu comércio exterior fosse igualmente relevante e que os países começassem a constituir reservas nessa nova moeda.
A União Europeia, mesmo com todo o peso do euro e da integração, ainda não consegue superar a presença do dólar no mercado financeiro global. “O euro talvez tenha hoje nem 15% de presença financeira no mundo”, afirma Rochlin. “A China pode tentar trilhar esse caminho, mas estamos falando de décadas, não de anos.”
Simão Silber destaca que o yuan (unidade de moeda chinesa) tem um caminho longo para ganhar confiança global, já que o sistema financeiro chinês ainda não é totalmente aberto ou transparente para os padrões internacionais. “Não se confia na moeda chinesa, porque lá o sistema político é ditatorial e pode mudar [o sistema financeiro] da noite para o dia. Alguém pode levar um grande calote. Nos Estados Unidos, isso não vai ocorrer.”
Sistemas de pagamento são incipientes
No âmbito dos Brics, a discussão sobre a redução da dependência do dólar tem se concentrado na criação de sistemas alternativos de pagamento. A iniciativa é defendida por quem alega que o dólar vem perdendo força gradualmente como moeda global, como aponta a queda da participação do dólar nas reservas internacionais e o rebaixamento da nota de crédito da dívida dos EUA.
O economista Roberto Luis Troster cita exemplos o Sistema de Pagamentos em Moedas Locais (SML), criado em 2014 no âmbito do Mercosul, que permite transações diretas entre moedas nacionais, sem necessidade de conversão pelo dólar. Atualmente 7% do comércio entre Brasil e Argentina opera por meio desse sistema, administrado pelos dois bancos centrais.
A participação é pequena, mas o sistema poderia, segundo Troster, ser ampliado a países do Brics. Ele lembra que o alerta sobre os riscos da dependência excessiva do sistema financeiro dos EUA ganhou força em 2022, quando os americanos impuseram sanções à Rússia após a invasão da Ucrânia. A exclusão da Rússia do Swift foi uma das medidas mais simbólicas. “Isso acendeu uma luz amarela”, afirma.
A Rússia conseguiu manter seu comércio exterior em níveis semelhantes aos anteriores por meio do SPFS (Sistema para a Transferência de Mensagens Financeiras), um sistema de pagamentos internacionais criado pelos russos em 2014 que vêm sendo expandido para parceiros que temem exclusão do Swift.
A China também busca soluções próprias, como o CIPS (Sistema de Pagamentos Interbancários Transfronteiriços), para reduzir sua exposição ao sistema financeiro tradicional dominado pelo dólar.
Trata-se, no entanto, de alternativas regionais ao sistema financeiro internacional ainda muito restritas em escala e aceitação global. “A estrutura financeira global está profundamente ancorada no dólar, inclusive em investimentos e reservas”, diz Silber. “A transição exigiria a construção de uma nova infraestrutura e a renegociação de acordos financeiros firmados ao longo de décadas.”
Rochlin concorda e dá um recado profético: “Os sistemas de pagamento internacionais continuam amplamente controlados por instituições americanas ou vinculadas ao sistema financeiro dos EUA. Isso torna muito difícil romper esse padrão. Lula não vai conseguir aposentar o dólar.”
Fonte ==> UOL