Recentemente, a porta-voz da Casa Branca declarou que decisões judiciais que bloqueiam a agenda do presidente Donald Trump são “inconstitucionais e injustas”. Uma ordem do Tribunal Distrital sobre deportações de imigrantes foi ignorada. Um confronto entre dois Poderes do governo dos Estados Unidos se aproxima do ponto de ebulição.
Enquanto o governo Trump-Musk avança para seu terceiro mês, com a intenção de agir rápido e quebrar o governo, tenho estudado o que escritores norte-americanos previram que aconteceria se um demagogo fosse eleito presidente. Eles sabiam há um século que chegaríamos a esse abismo. Seus textos foram considerados em 2016, mas hoje suas consequências são inevitáveis.
Um próximo passo previsto em livros como “Isso Não Pode Acontecer Aqui”, de Sinclair Lewis, era um ataque à Suprema Corte caso esta não concordasse com a agenda do governo. Será essa a notícia de amanhã? As mesmas forças estavam em ação exatamente 90 anos atrás, quando essa obra foi publicada: uma plutocracia e oligarquia crescentes. O ano muda, mas os atores dizem a mesma coisa. Três histórias alternativas imaginam a chegada do fascismo ao Potomac:
“Iron Heel” (1908)
(‘Calcanhar de ferro’, em tradução direta)
No romance de Jack London, as revoltas são brutalmente reprimidas por uma oligarquia impenitente: “Nós esmagaremos vocês, revolucionários, sob nosso calcanhar”. Uma bomba é lançada no Congresso. Deputados socialistas são presos e enviados para campos; sindicatos são depredados, a Suprema Corte é dissolvida. Seguem-se 300 anos de tirania, que finalmente produzem uma Irmandade do Homem.
Isso Não Pode Acontecer Aqui (1935)
Em agosto de 1934, Dorothy Thompson, esposa do prêmio Nobel Sinclair Lewis, tornou-se a primeira repórter expulsa da Alemanha por deslealdade. Lewis combinou a experiência dela sob o Reich com o governador gângster da Louisiana Huey Long. O resultado foi um presidente “vulgar, quase analfabeto, um mentiroso público facilmente desacreditado”, que de imediato ataca a mídia: “Conheço a imprensa muito bem (eles tramam), como podem divulgar suas mentiras e promover suas próprias posições e alimentar seus bolsos gananciosos”. O presidente Windrip ameaça o México: eles não são comerciantes justos! Estão enviando criminosos e subversivos para o norte. Parece familiar?
A partir daí, tudo entra em queda livre. Quando as pessoas protestam, perdem propriedades e terras. Tribunais militares e milícias administram uma justiça obscura. Então vêm os campos de concentração e a dissolução do Congresso.
Com base no Canadá, um “Novo Underground” revida, mas não há um final hollywoodiano. O presidente é deposto, assim como seu sucessor, até que um general governe com mão de ferro —ou calcanhar. A resistência demora gerações para ter êxito. Essas atitudes estão adormecidas na ideologia atual dos americanos? Como escreve o crítico Gary Scharnhorst em um posfácio, “a resposta para ‘isso não pode acontecer aqui’, é ‘já aconteceu’”.
Complô Contra a América (2004)
Roosevelt perde a eleição de 1940 para Charles Lindbergh, “Lindy”, o famoso aviador e patrocinador do Bund germano-americano pró-nazista. Anti-imigrante e antissemita, ele alerta os norte-americanos contra a “diluição por raças estrangeiras” e a “infiltração de sangue inferior”.
Até sua eleição, “os líderes do Partido Republicano estavam desesperados com a recusa obstinada de seu candidato a permitir que qualquer pessoa além dele mesmo determinasse a estratégia de sua campanha… Na manhã seguinte à eleição, prevalecia a descrença, especialmente entre os pesquisadores de opinião”. O novo presidente cumprimenta Hitler calorosamente, assina um pacto de não agressão com ele e cria um “Departamento de Absorção Americana” para enviar crianças judias como trabalhadores braçais e diaristas.
“E por quanto tempo o povo americano irá tolerar essa traição perpetuada por seu presidente eleito?”, pergunta o colunista Walter Winchell no programa de notícias de rádio de maior audiência do país. Na semana seguinte, Winchell é demitido e depois assassinado.
A destruição dos direitos civis culmina no primeiro Pogrom americano, em setembro de 1942. Templos são atacados e saques antijudaicos se espalham pelo país. Finalmente, Roosevelt é reeleito e a sanidade prevalece.
Ao longo desses livros, a emoção que predomina é o medo. Medo do seu próprio governo e suas forças, medo da sua própria cidade, onde um grupo étnico é colocado contra outro. O medo como uma longa mão escura que sai do céu, agarra o Capitólio e a Casa Branca e os espreme até virarem pó.
Nessas obras, os tiranos americanos têm um mesmo manual: restrições à imprensa, criação de milícias, isolamento e ataques a grupos como muçulmanos ou judeus; a eliminação do Congresso e a prisão da Suprema Corte, tudo criado por uma aliança terrível para reprimir a dissidência de megacorporações, igrejas evangélicas e conservadores de extrema direita dentro e fora do Partido Republicano.
Esses autores alertam que as rebeliões contra o autoritarismo fracassarão porque os cidadãos estarão muito distraídos, despreparados e divididos para agir. Tais cenários podem parecer extremos, mas qualquer um que leia esses romances deve ser perdoado por pensar: sim, isso realmente poderia acontecer aqui. Cautela nunca é demais.
A experiência do Brasil, que marginalizou, resistiu e, finalmente, derrubou a ditadura, contém lições para os americanos, se apenas as aprendermos e aplicarmos. Exatamente quais lições, e sua relevância, deixo para alguém mais bem informado delinear.
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Fonte ==> Folha SP