A força de “Claustrofobia” reside na maneira como transforma um espetáculo solo em um retrato expansivo da sociedade brasileira. Márcio Vito, sozinho no palco do auditório do Sesc Pinheiros, interpreta três personagens — uma executiva, um porteiro e um ascensorista —, encarnando um microcosmo de tensões sociais e expondo hierarquias e contradições que definem a vida urbana contemporânea. O prédio empresarial onde a trama se passa é metáfora viva do Brasil, um espaço que aprisiona tanto quanto revela.
A direção de Cesar Augusto opera com precisão, utilizando elementos mínimos para criar máxima claustrofobia e o cenário, premiado com o Shell, se coloca como uma extensão do corpo do ator. Estruturas metálicas e jogos de luz projetam sombras que sugerem corredores, elevadores e celas, reforçando a sensação de confinamento. A iluminação de Adriana Ortiz, indicada ao APTR, funciona como narrador invisível, alternando entre tons frios e cortantes, luzes trêmulas e uma penumbra constante. Cada escolha técnica amplifica a solidão dos personagens, mesmo quando suas histórias se cruzam.
Márcio Vito executa um trabalho de virtuose, transitando entre os três papéis sem jamais confundir o público. Suas transformações vocais e gestuais, são como mudanças de universo. A executiva se move com rigidez calculista, o porteiro oscila entre a postura militar e a resignação, e o ascensorista carrega no corpo o peso de uma existência invisível. O mais impressionante é que, mesmo interpretando diálogos entre si, os personagens nunca verdadeiramente se conectam. Essa desconexão proposital revela o cerne da peça: a alienação não é um acidente, mas um mecanismo do sistema.
O texto de Rogério Corrêa evita discursos óbvios, antes faz uma crítica afiada e cheia de ironia. O sonho do porteiro de se tornar policial não é uma escapatória, mas assimilação à mesma máquina que o oprime. A executiva, por sua vez, é tanto algoz quanto vítima, presa em sua própria armadilha de ambição. O ascensorista, figura mais silenciosa, talvez seja o mais trágico dos três, pois nem mesmo o desejo de mudança lhe resta.
O sucesso de “Claustrofobia” no Rio de Janeiro, somado aos prêmios e indicações, não é acidental. O espetáculo funciona porque une forma e conteúdo de maneira inseparável e a opção por um monólogo múltiplo é uma escolha conceitual que reforça o tema. Se o prédio é um símbolo do Brasil, então Márcio Vito é seu único habitante, um sobrevivente que carrega todas as vozes, todas as frustrações e todas as máscaras que a sociedade impõe.
Três perguntas para…
… Márcio Vito
Qual foi o seu desafio maior na montagem: a construção física/vocal de cada personagem, a transição rápida e clara entre eles, ou sustentar a energia dramática de todo o universo da peça?
Abandonar vícios físicos e vocais que nascem de uma prática teatral menos exigente e que se entranham na expressão artística individual através de um certo conforto corporal, foi sem dúvida meu maior desafio. Ir além de algo que já seria bom o suficiente para contar uma história, era uma provocação diária do Cesar Augusto diretor do espetáculo, que foi assimilada prontamente pela pesquisa e trabalho da Andrea Maciel Garcia, preparadora corporal.
A descoberta física dos personagens a que chegamos juntos, e a definição do que seriam as transições entre eles, fez com que a energia dramática do espetáculo fosse fluida e a peça inteira acontecesse como uma única cena estendida. Uma narrativa ininterrupta com versões e digressões que permitem acessar diferentes complexidades e personalidades nos confrontos de uma mesma situação e circunstância.
O prédio onde a história se passa é um microcosmo do Brasil, e no palco você é esse microcosmo sozinho. Como essa responsabilidade de encarnar todas as faces dessa crítica social impactou seu processo?
Eu tive medo. Mas como costumo repetir para minha filha, medo é bom. Me preparei para que cada passo na construção da peça fosse dado com firmeza e coerência dramática. Cesar me mostrou um caminho muito natural: um senhor, um ator talvez, que poderia ser ou ter sido uma das pessoas dessa história (imaginada e assinada por Rogério Corrêa) conta o que vivenciou deixando que sua memória tomasse forma em seu corpo. Isso me guiava. As atitudes descritas em cena foram presenciadas.
As personagens atravessam o ator pelas palavras que nascem da experiência de quem testemunhou cada situação apresentada, sem artificialidade, acessando diferentes corpos e falas, mas como um depoimento súbito. Sem composição prévia, sem escolhas antecipadas. Como num fluxo em que se conta uma história com a potência de quem de fato viveu algo extraordinário.
O sucesso no Rio, o Shell de Cenário e as indicações ao APTR (incluindo Melhor Ator) comprovam o impacto do espetáculo. O que você acha que mais tem impressionado o público e a crítica?
Temos uma história essencialmente teatral. É comum que as pessoas saiam da peça com a sensação de que o teatro é potente como arte e opção narrativa. De que a arte do palco vale a pena. Acho que a evidente coletividade da peça impressiona. Ela enaltece o fazer teatral. Semeia no público uma esperança na arte do teatro para além do reconhecimento dos méritos individuais da nossa ficha técnica.
E eu estou muito bem acompanhado nesse monólogo. É uma mágica que se faz diariamente à muitas mãos. Desde a trilha original do André Poyart que tem elementos que dialogam com a minha fala e com o gestual marcado da peça, até a luz da Adriana Ortiz que foi criada para uma operação que dança comigo. O cenário da Beli Araújo nem se fala, é uma ideia que sempre esteve presente no processo através do Cesar, mas parecia impossível que algo tão denso pudesse flutuar e ao mesmo tempo ressaltar a curva dramática da peça.
Eu me sinto em cena realmente de mãos dadas com os operadores, com a Andrea, preparadora corporal e com o Cesar, a cada apresentação. No cinema se costuma dizer que o bom clima de uma equipe, imprime. No sentido de que a película capta não só a performance dos atores mas também o que está fora do campo de visão da câmera.
No teatro isso não é teoria, nem hipótese. É uma realidade que tenho a honra de vivenciar e oferecer ao público. Neste momento de tanta tecnologia, talvez impressione ainda mais a potência do simples. Daquilo que se realiza e é recebido de forma direta e presencial numa experiência coletiva e única.
Sesc Pinheiros – r. Paes Leme, 195, Pinheiros, região oeste. Qui. a sáb., 20h. Duração: 60 minutos. Até 12/7. A partir de R$ 15 (credencial plena) em sescsp.org.br
Fonte ==> Folha SP