Sinto que vivemos uma espécie de ditadura da liberdade nos relacionamentos, onde somos, ao mesmo tempo, opressores e oprimidos. E o mais cruel: muitas vezes, nem percebemos que, em nome de um pretenso respeito ao espaço próprio, estamos sufocando o espaço de nossos próprios afetos, interesses, intensidades e transbordamentos.
Na busca por esse amor supostamente mais saudável —mais livre, leve, sem pressões, expectativas ou contornos— estamos adoecendo. A epidemia da solidão em que vivemos (onde 1 em cada 4 pessoas no mundo se sente sozinha) e o fato de o Brasil liderar rankings de ansiedade e depressão no mundo revelam que não apenas a liberdade afetiva nos aprisionou como também tem nos desnutrido.
Percebo algumas prisões auto-impostas (e socialmente reforçadas) nessa ditadura da liberdade. Uma delas é a hipervalorização da autonomia como sinônimo de maturidade emocional. Talvez essa fantasia de autossuficiência plena que ronda o imaginário amoroso atual não passe de uma tentativa de negar nosso desamparo original. Pois é… não somos tão desconstruídos ou desapegados quanto gostaríamos de ser ou quanto acreditamos que deveríamos ser para parecer desejáveis em 2025. E reconhecer que desejamos vínculos profundos não nos faz “dependentes emocionais” (vamos fugir dessas simplificações diagnósticas alarmistas?). Significa apenas que, como todos, somos seres interdependentes que se transformam, se expandem e se beneficiam com amores próximos e comprometidos.
Como nos lembra Freud, viemos ao mundo sem saber cuidar de nós e foi o outro, em sua presença ou ausência, quem moldou nosso modo de amar, temer, desejar. Fingir que não precisamos de ninguém é uma fantasia narcísica de autossuficiência. Mas negar o desamparo não nos fortalece, apenas nos isola. Por que mesmo ainda é tão assustador reconhecer que somos seres faltantes, desejantes de afeto, carinho, mensagem fofa no WhatsApp no meio da tarde, fim de semana romântico na praia? E também desejantes de fim de semana de sofá, série e leitura sem a presença do outro e sem que isso seja lido como desamor? Sim, somos interdependentes e ambivalentes. Contradições ambulantes.
Queremos liberdade: a nossa. Mas esperamos comprometimento: do outro.
Desejamos que respeitem o nosso tempo, as nossas amizades, o nosso modo de amar. Mas será que oferecemos o mesmo em troca? Será que suportamos que o outro também tenha seus códigos, suas escolhas e até seus limites? Ou será que, no fundo, esperamos que ele se molde à nossa medida; que saiba se encaixar nos nossos horários disponíveis, que antecipe nossas vontades, que nos escolha sem que precisemos abrir mão de nada?
Essa tensão entre liberdade e entrega aparece de forma sutil, mas constante, no começo de muitos vínculos. Um exemplo: duas pessoas começam a se ver, a se gostar, mas mantêm, cada uma, suas rotinas. No fundo, esperam que o outro sugira o encontro. Na quinta-feira, ele propõe o sábado à tarde. Mas ela já marcou um jantar com amigas e deixou a sexta livre, em expectativa, mas agora sente que “ele não pensou nela”. Isso porque ele, por sua vez, menciona um pedal e cerveja com os irmãos na sexta, uma tradição antiga. Não estará disponível quando ela esperava. Ela também não. Os dois desligam a chamada frustrados, certos de que o outro não está se esforçando. Tentando provar que não estão tão envolvidos assim, saem com as amigas e os irmãos, flertam, atuam em sua liberdade. Mas voltam pra casa com a incômoda sensação de desencontro. Estão presos. Não a um compromisso, mas a um orgulho que exige reciprocidade antes de oferecer entrega.
Na aparência, tudo soa moderno e leve: sem cobranças, sem rótulos, cada um com seu tempo. Mas, por trás dessa equação idealizada se esconde uma dificuldade em ceder, em reconhecer o outro como um sujeito tão cheio de vontades quanto nós. Uma relação precisa de dois. Mas muitas vezes queremos estar acompanhados sem nos implicar, sem abrir mão de parte da rotina, das certezas, da vida autocentrada.
E há ainda uma terceira prisão auto-imposta, que se revela no momento em que dizemos estar mais maduros, mas nos comportamos como adolescentes: movidos não mais por um ideal romântico ingênuo, e sim por uma nova armadilha contemporânea —o paradoxo da liberdade de escolha, que parece nos garantir um mundo de possibilidades, mas nos aprisiona num ciclo compulsivo de descartabilidade, ansiedade e insatisfação. Nos apegamos à ideia de que pode sempre existir alguém mais compatível, mais disponível, mais interessante e, com isso, deixamos de nos demorar na descoberta real de quem está diante de nós.
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Queremos afeto, mas recusamos o foco, o tempo e a presença que ele exige. Nunca foi tão difícil permanecer sem a sensação de perda de tempo ou liberdade. Há que topar perder as supostas milhões de possibilidades para que possamos ganhar o encontro profundo e genuíno com um eu singular. Relação não é achado, é construção.
E quando, contra todas as estatísticas, duas pessoas se gostam, se escolhem e constroem alguma coisa… Surge a última prisão: a que vem da confusão de línguas que interpreta “laços” como amarras e não como contornos. A fobia à palavra “namoro” é um exemplo presente especialmente entre homens 35+, que vivem relações com todos os elementos de um namoro —alta frequência de encontros, participação social e familiar, planos a médio prazo, envolvimento emocional… Homens que talvez nem estejam saindo com outras pessoas, ainda que o acordo monogâmico nunca tenha sido discutido. Mas só de escutar a palavra “namoro”… Pânico. Terror. Acting out, como diria a psicanálise.
Essa reação é mais do que uma simples resistência ao rótulo: é a ação atropelando e calando a reflexão, o diálogo interno (e com o outro) e a negociação emocional. Em vez de conversar, desaparece. Em vez de nomear os afetos, foge deles. Ambíguos, complexos, angustiantes, indefinidos, pesados… Escapa para não precisar reconhecer o medo de se implicar. A fuga fantasiada de liberdade.
Confundimos o ato de sair de um cárcere com recusar qualquer abrigo. Como se todo vínculo fosse prisão, e toda entrega, ameaça. Mas há uma diferença profunda e urgente entre escapar de relações sufocantes e rejeitar qualquer possibilidade de implicação. Uma coisa é se libertar de uma estrutura que anula. Outra, bem diferente, é se defender do acolhimento por medo de se afetar demais.
Aqui é importante reconhecermos o eco de feridas antigas para que entendamos se, ao buscarmos nossa tal liberdade, não estamos ainda presos num trauma amoroso do passado. Já ouvi de um amor que tinha tudo pra ser lindo: ” não sei se tô pronto pra gente… tive duas relações que exigiram os mesmos tendões”. Para ele (e para tantos), laço virou sinônimo de corda de estrangulamento. Precisamos ter coragem de não estrangular nossas possibilidades lindas de afeto do presente porque um dia nossos laços nos apertaram demais.
Penso aqui no famoso “dilema do porco-espinho”, de Schopenhauer: pra não morrer de frio, os porcos-espinhos se aproximam, buscando o calor e o aconchego de um encontro mais íntimo. Mas é justamente esse encostar que os fere. Afastam-se. Mas o frio da solidão os faz voltar. Querem e precisam do calor um do outro, do alívio da presença mútua. Ferem-se um pouco, afastam-se um pouco… E voltam. Buscam um enlace que não é fixo, é movimento. Porque amar é isso: habitar o entre, o atrito, o risco e não deixar que o medo congele o desejo.
E se você também tem um dilema ou uma dúvida sobre suas relações afetivas, me escreva no colunaamorcronico@amorespossiveis.love. Toda quarta-feira respondo a uma pergunta aqui.
Fonte ==> Folha SP