Nova versão de ‘Cartas Libanesas’ estreia no Sesc – 10/04/2025 – Mise-en-scène

Nova versão de 'Cartas Libanesas' estreia no Sesc - 10/04/2025 - Mise-en-scène

A nova montagem de “Cartas Libanesas – Ayuni”, em cartaz no Sesc Ipiranga, marca uma transformação significativa no espetáculo que, há dez anos, surgiu como um monólogo solitário sobre um mascate libanês no Brasil. Agora, a peça se expande em um diálogo amoroso e dramático entre Miguel (Eduardo Mossri) e Adibe (Ana Cecília Costa), sua esposa, que ficou no Líbano. A dramaturgia inédita de Duca Rachid, em conversa com o texto original de José Eduardo Vendramini, insere a voz feminina e reescreve a história como um dueto de esperas e saudades.

Se antes o público acompanhava apenas as cartas de Miguel, agora as respostas de Adibe ecoam no palco, revelando seu luto, suas dúvidas e sua resistência em meio à guerra e à incerteza. A encenação ganha um contraponto emocional – enquanto ele enfrenta o desenraizamento no Brasil, ela vive a angústia da ausência e da maternidade solitária. A escolha de trazer Ana Cecília Costa, que já trabalhou com Mossri em “Órfãos da Terra”, garante uma boa química, tornando o reencontro epistolar entre os personagens ainda mais comovente.

O título “Ayuni” (“luz dos meus olhos”, em árabe) não é apenas uma metáfora afetiva, mas um elemento cênico. A iluminação e a direção parecem brincar com essa ideia, alternando entre cenas íntimas (como Adibe lendo cartas à luz de uma lamparina) e momentos mais amplos, que remetem à travessia do mar e à vastidão da saudade. A cenografia, ainda que minimalista, sugere tanto o interior libanês quanto as ruas do Brasil, reforçando o deslocamento físico e emocional dos personagens.

Embora centrada na imigração libanesa, a peça transcende a experiência específica e fala sobre todas as separações impostas pela migração. A guerra, a espera, a adaptação a um novo país – temas que ecoam em crises migratórias atuais – são tratados com sensibilidade sem sentimentalismo fácil. Quando Adibe questiona se Miguel algum dia voltará, ou quando ele descreve o Brasil com um misto de esperança e desilusão, a plateia é levada a refletir sobre o custo humano por trás das diásporas.

Três perguntas para…

… Eduardo Mossri

“Cartas Libanesas – Ayuni” aborda não só a saga do imigrante, mas também a espera daqueles que ficaram. Como essa dualidade de perspectivas enriquece a narrativa?

A partida e a espera já trazem em si o conflito primordial. De um lado, a dor daqueles que precisam partir, enfrentando mares e destinos incertos. De outro, o vazio deixado nos que ficaram, carregando a ausência como companhia. Essa dinâmica alimenta a narrativa com uma riqueza de emoções – saudades que transbordam, esperanças que se renovam, e a permanente sensação de incompletude, tudo suspenso na expectativa de um reencontro que pode nunca vir.

Vivíamos então um outro conceito de tempo: jornadas de 40 dias em navios precários, cartas que levavam três meses para cruzar oceanos – e que, ao chegar, muitas vezes traziam notícias já desatualizadas pela vida que insistia em seguir seu curso.

A peça celebra a contribuição dos imigrantes à cultura brasileira. Como você acredita que a história libanesa se conecta com outras histórias de migração no Brasil?

A imigração libanesa tem características próprias na formação do Brasil. Tudo começou com um convite histórico: em 1876, Dom Pedro 2º visitou o Líbano e incentivou a vinda de libaneses ao país. Mas, diferentemente de outros grupos migratórios, eles não vieram como mão de obra agrícola nem por políticas governamentais – eram comerciantes e desbravadores que se espalharam por todo o território nacional, de São Paulo a Manaus, sem se fixar em apenas uma região.

Assim como outros imigrantes buscavam melhores condições de vida, fugindo de violações de direitos em seu país de origem. Mas o que realmente marcou sua presença foi a notável capacidade de integração na sociedade brasileira. O libanês tornou-se uma figura familiar no imaginário popular – o dono da “lojinha” –, e sua culinária, com quitutes como quibe, esfiha e tabule, hoje é parte incontestável da gastronomia brasileira.

A religião também facilitou essa identificação: os primeiros imigrantes eram majoritariamente cristãos, o que criou mais um elo com a população local. Em resumo, embora tenham chegado por motivos e circunstâncias diferentes de outros grupos, os libaneses se misturaram ao caldeirão cultural brasileiro e contribuíram decisivamente para a formação da identidade nacional que conhecemos hoje.

O que a experiência de apresentar a peça no Líbano e visitar a aldeia da sua família trouxe para a nova montagem?

Quanto à nova montagem, não saberia afirmar. Mas enquanto ser humano em constante transformação, esse processo me trouxe uma consciência mais profunda sobre minhas raízes e sobre como a ancestralidade me constitui. A experiência confirmou a universalidade e a potência desse tema – que me permitiu apresentar a primeira versão por dez anos e agora realizar uma nova produção, trazendo para o centro o olhar da mulher.

Como diz o texto da peça: “Aquele que nega sua origem, não tem origem”. Esse trabalho tem sido, para mim, um caminho de autoconhecimento – e, através do teatro, minha arte e ofício, uma forma de seguir divulgando e celebrando essa cultura que me habita e que tanto tem para nos ensinar.

Sesc Ipiranga – r. Bom Pastor, 822, Ipiranga, região sul. Sex. e sáb., 20h. Dom., 18h. Até 23/5. Duração: 90 minutos. A partir de R$ 18, em sescsp.org.br e nas bilheterias das unidades.



Fonte ==> Folha SP

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