Startup brasileira está popularizando telecirurgias com IA no Amazonas

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Nos anos 2000, o engenheiro de telecomunicações Leonardo Melo foi surpreendido com uma pergunta aparente simples do seu irmão, médico. Como resolver uma questão tão complicada no Brasil como a telemedicina? Embora parecesse um questionamento temporário, Melo começou a estudar e destrinchar o assunto.

Anos depois, a Diagnext, empresa de diagnósticos fundada por Leonardo, realizou inúmeros projetos de telecirurgia assistida em diversas regiões da Amazônia, além de criar um sistema de compressão para exames de imagem. O time da empresa tem apoio da Intel para realizar tais procedimentos e aponta mais 100 mil exames realizados no estado.

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Embora pareça uma realidade um tanto quanto distante, a telemedicina é um campo que vem engatinhando progressivamente no país e ganhou força global após o período de isolamento da pandemia. Na região norte, com os inúmeros desafios de locomoção e infraestrutura, se torna uma alternativa viável e rápida para atender pacientes.

Manaus, capital do Amazonas, é a mais populosa da região norte (Imagem: GettyImages)

Engenheiro com passagens em gigantes como a HP e até gerente de TI em bancos, Leonardo Melo decidiu ser o momento de empreender naquilo que tanto estudou. Quase uma década depois, com softwares, sistemas e códigos, ele decidiu criar a Diagnext e dar uma guinada no setor de telemedicina brasileira — na época, extremamente escasso.

“A gente desenvolve muito baseado em patentes. Somos uma empresa pequena, com seis patentes. Mas também somos uma empresa que desenvolve tecnologias próprias. A gente não usa commodities, a gente desenvolve novidade”, comenta Leonardo Melo.

Mas com todas as existentes dificuldades que tangem a telemedicina, por que escolher a região amazônica como cenários de testes?

Amazônia virou o laboratório perfeito?

“A gente procurou um laboratório em um ambiente ruim. Fazer em São Paulo, Rio de Janeiro ou Belo Horizonte, todo mundo faz”. Foi assim que Leonardo respondeu sobre a escolha do laboratório da Diagnext, afinal de contas essas cidades e estados têm infraestrutura a vontade para ser um palco de testes.

No estado do Amazonas a história é outra. Por mais que seja comum resumir todo o estado a somente a Floresta Amazônica, o Amazonas enfrenta problemas devido a sua menor infraestrutura e aplicação de recursos. Apesar de que o último Censo do IBGE tenha apontado uma melhoria na expectativa de vida, o estado continua abaixo da média nacional.

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Tabatinga, uma das cidades contempladas pelo projeto, faz tríplice fronteira com Colômbia e Peru (Imagem: FAPEAM/reprodução)

Uma pesquisa do Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN), com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), aponta o estado como o segundo maior com porcentagem de pessoas em situação de pobreza. Perdendo somente para o Maranhão, o Amazonas teria 56,7% de sua população em situação de vulnerabilidade avançada.

Nessa toada, o fundador da Diagnext diz que a escolha foi para atender quem realmente precisava da telemedicina. Como Melo apresentou sua dissertação de mestrado em Manaus, já tinha contatos com a secretaria do estado e afinco com as Forças Armadas — interessadas no projeto — foi tudo um passo natural.

Os pilares da medicina por meio da internet

O conceito de telemedicina é extremamente amplo, mas o caso da Diagnext para o Amazonas focou em dois pontos-chave: telerradiologia e telecirurgia assistida. A telemedicina comum, na qual o paciente e médico conversam por uma plataforma de videoconferência já se tornou comum, mas a telecirurgia não.

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Vale notar que estamos falando sobre telecirurgia assistida e não cirurgia remota. Enquanto a segunda é aquela em que um médico, de qualquer parte do mundo, opera um robô que realiza a cirurgia em seu lugar, a telecirurgia assistida utiliza diretamente humanos, mas com uma ajudinha.

Para realizar esse processo, um médico especialista inseriu um óculos de realidade aumentada que é diretamente conectado ao centro cirúrgico. Na sala, há inúmeras câmeras 3D que funcionam como os olhos desse médico que veste o óculos, e então auxilia os demais profissionais presentes na sala de cirurgia a realizar o procedimento.

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Diagnext serviu como um fio condutor de tecnologias para possibilitar os procedimentos (Imagem: Diagnext)

O papel da Diagnext não foi relacionado com a operação em si, mas na tecnologia por trás da cirurgia. “A gente controlou a estrutura de comunicação, o tráfego de dados e a compressão da imagem para que canais simples pudessem ter uma operação assim”, explica Melo.

A tecnologia ofertada pela Diagnext foi usada em cirurgias, mas o criador da empresa comenta que ela também é possível para ensinar estudantes. Por meio do recurso, há a possibilidade de gravar o conteúdo, ou mostrar a cirurgia em tempo real para alunos de medicina.

Claro, a principal aplicação é realmente na ajuda da cirurgia. No contexto amazônico de difícil locomoção, é possível que um médico na cidade X use o óculos para auxiliar uma cirurgia na cidade Y em caso de emergência e auxiliar o problema do paciente.

Cirurgia com robôs é viável?

Em junho, a Universidade John Hopkins revelou que realizou a primeira cirurgia 100% autônoma em um órgão do corpo humano. Na ocasião, foi realizada a remoção da vesícula biliar em órgãos humanos já retirados do corpo. Todo o processo envolveu, inclusive, aprendizado de máquina e IA para estudar dados sobre a cirurgia.

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Cirurgias robotizadas em humanos ainda engatinham no cenário mundial (Imagem: Universidade John Hopkins/reprodução)

Inicialmente, quando soube do projeto da Diagnext, minha ideia sobre a telecirurgia era exatamente essa, mas não foi o caso. Apesar disso, Leonardo Melo aponta que é até possível realizar cirurgias robotizadas no Amazonas, mas exigiria muito dinheiro e tem alguns problemas que a telecirurgia assistida pode resolver.

“Se você parar para pensar, ela [a cirurgia robotizada] não ensina ninguém e não replica ninguém a fazer uma cirurgia. É só o médico e a máquina. Ninguém aprende nada, não tem o viés acadêmico. O objetivo dessa telecirurgia assistida está no ‘assistir’, onde um passa o conhecimento para o outro”, salienta Leonardo Melo, fundador da Diagnext.

“Tornamos a tecnologia factível”

De início eu estava um tanto quanto cético a respeito do projeto da Diagnext, mas algumas palavras de Leonardo me ajudaram a entender o escopo do projeto. Um profissional especializado em cirurgias não é ninguém novo, e na melhor das hipóteses, tem no mínimo uns 45 anos.

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Agora, imagine profissionais ainda mais experientes e velhos na profissão, enfrentando toda a logística da cansativa viagem por meio do Amazonas. Diferente de Rio de Janeiro e São Paulo, com seus respectivos 43 mil e 248 mil km², o estado do Amazonas tem absurdos 1,5 milhão de km².

Com isso em mente, é interessante pensar que colocar um médico experiente desses para ensinar, mesmo que remotamente, outro profissional a realizar uma cirurgia, pode terminar com a espera e agonia do paciente, custos de transporte, e a fadiga do próprio cirurgião.

A prova de conceito da Diagnext

Após anos de pesquisa, em 4 de abril deste ano a Diagnext realizou uma prova de conceito (POC) em hospitais militares de Manaus, Tabatinga e São Gabriel da Cachoeira. Tal iniciativa contou com vídeo bidirecional, compressão adaptativa e latência audiovisual inferior a 600ms.

Vale salientar que a equipe utilizou uma conexão via satélite da Starlink para proporcionar as telecirurgias, mas não há nenhuma parceria entre a companhia e a operadora de internet. Como a Starlink, na visão da Diagnext, era a melhor opção de conexão, ela foi a escolhida.

O objetivo da POC era verificar e testar eventuais problemas que aconteceriam em uma situação real de uso. A fase atual do projeto já visa um estado de operação ainda mais maduro e tem até mesmo incentivo do governo da Espanha, que entende os testes como vitais para o futuro de aplicações cirúrgicas.

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Cirurgias de maior risco, como coração, ainda precisam passar por testes antes de serem implementadas (Imagem: Diagnext)

Por se tratar de um teste, aproximadamente uma centena de pacientes foram contemplados pela POC. Por questões de confidencialidade médico-paciente, a Diagnext não pôde nos passar dados exatos sobre todos os procedimentos feitos, mas a documentação da empresa aponta cerca de 150 cirurgias realizadas com apoio remoto, além de uma centena em telerradiologia.

Grande parte desses procedimentos utilizou uma inteligência artificial europeia para detecção de fraturas e fissuras. A ideia é utilizar a tecnologia para aumentar a eficácia na detecção de problemas desse tipo e acelerar o processamento de dados.

Leonardo Melo detalha que a telecirurgia assistida contemplou apenas casos de menor complexidade. Cirurgias que envolvem fraturas e operação de joelho estavam entre a maioria dos procedimentos realizados. Já que se tratava de uma POC, Melo conta que tudo precisava ser testado com muito mais afinco antes de abrir os testes para operações de maior gravidade.

A parte técnica

Para atingir o nível de conexão e transmissão de dados desejada, o time da Diagnext se juntou ao exército e utilizou satélites de órbita terrestre baixa (LEO). Segundo a startup, isso fez com que as sessões cirúrgicas fossem conduzidas com uma latência inferior a 600 milissegundos.

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Como se trata de uma região instável e adversa, a POC também assegurou que a transmissão de dados ocorreu com conexões baixas, entre 256 e 512 kbps. A disponibilidade operacional das cirurgias, ou seja, o apoio real do médico ao centro cirurgico teria se mantido estável e, 99,1% do período de testes.

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Tecxnologia de envios de exames rapidamente da startup pode ser implementada em qualquer lugar (Imagem: Diagnext)

É possível replicar o projeto em outras regiões?

Irrestrito, o projeto de telemedicina da Diagnext pode ser usado em inúmeras regiões do Brasil, seja no sertão nordestino ou no pantanal mato-grossense. Melo explica essa possibilidade e exemplifica que qualquer região pode ser contemplada com a tecnologia, mesmo em situações complexas, como em desastres naturais.

“Imagina no sul do Brasil, na situação das enchentes, como uma tecnologia como essa poderia fazer a diferença e dar assistência médica ao povo que estava lá. Na época da COVID, por exemplo, nós fazíamos a parte operacional de comunicação e compressão de dados em hospitais de campanha

A compressão adaptativa

Por mais que não seja o foco da telecirurgia assistida, uma tecnologia desenvolvida pela Diagnext e usada nas POCs da empresa me chamou a atenção. Trata-se da compressão adaptativa, que como o nome sugere, consegue comprimir arquivos médicos com um altíssimo grau de precisão.

O que essa tecnologia faz é receber uma imagem, como de um exame de Raio-x, e reduzir o tamanho do arquivo ao passo que mantém a qualidade. Os arquivos médicos atendem ao formato DICOM, analisado pelo recurso e então comprimido para se tornar um arquivo final muito menor e fácil de ser transmitido.

Segundo uma pesquisa realizada pela própria Diagnext em parceria com o professor Filipe Litaiff, do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ), a compressão adaptativa trabalha com uma taxa de compressão entre 75 e 97% por meio de uma análise contextual do conteúdo. O levantamento indica que em 8% dos casos, a versão comprimida das imagens era até melhor que as originais.

Critério JPEG Padrão JPEG 2000 Lossless TIFF Compressão Adaptativa
Taxa de Compressão 50–80% 30–50% 30–50% 75–97%
Ajuste por Modalidade ❌ Não ❌ Não ❌ Não ✅ Sim
Preservação Diagnóstica ⚠️ Parcial ✅ Sim ✅ Sim ✅ Sim
Análise Contextual ❌ Não ❌ Não ❌ Não ✅ Sim
SSIM Médio 0.85–0.92 0.92–0.96 0.90–0.95 0.96–0.99
PSNR Médio (dB) 30–35 35–40 33–38 38–47
  • SSIM (Structural Similarity Index) e PSNR (Peak Signal-to-Noise Ratio) são métricas de qualidade de imagem — quanto maiores, melhor a preservação visual.

Esse foi um teste duplo às cegas com quatro radiologistas, que a Diagnext infelizmente não pôde nos revelar por motivos de confidencialidade. Aos médicos foram mostradas imagens originais e compactadas para os mesmos apontarem qual é qual. Somente 10% dos exames exigiram um processo de reavaliação, necessitando de pequenos ajustes nos parâmetros de compressão.

Dentre os exames mostrados, estavam tomografias computadorizadas, ressonância magnética, radiografia digital e ultrassonografia. Exames de angiotomografia coronariana compactados, para avaliar artérias coronárias, tiveram uma imagem melhor do que os exames originais, segundo os radiologistas.

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Tomografias do tórax foram as mais “inadequadas” e precisaram ter uma compressão mais conservadora (Imagem: Diagnext)

Com a técnica da compressão adaptativa, o tempo médio para enviar exames caiu de 45 para 2 minutos. Os laudos diagnósticas foram entregues remotamente em menos de 48 horas, segundo as informações divulgadas pela empresa.

“De um lado, você gasta menos guardando, armazenando esse arquivo. Do outro, você guarda perenemente [por 20 anos] e gasta menos com processamento”, explica o fundador da Diagnext. Fabiano Sabatini, Partner Sales Manager da Intel no Brasil, aponta que o fator de armazenamento e economia financeira é fundamental para manter a saúde de diversas empresas.

“Torna-se um problema para as empresas manterem esses dados, então ter uma compressão assim ajuda a empresa a manter seu negócio. Guardar 20 anos de imagens com a quantidade crescente de equipamentos médicos criados e instalados forma quase que um tsunami de dados”, comenta Fabiano Sabatini.

No Brasil, a resolução n.º 1.821/2007 do Conselho Federal de Medicina (CFM) estabelece que exames de imagem e laudos do paciente devem ser armazenados por 20 anos.

Apesar da publicação da pesquisa pela Diagnext, o próprio levantamento apresenta algumas limitações. A amostragem de exames é relativamente pequena, assim como o número de avaliadores, e não houve comparação direta com todos os fabricantes do mercado. Os testes foram feitos em ambientes controlados, que podem diferir da prática clínica diária.

Como a Intel e a Diagnext se juntaram?

A Intel tem um longo histórico de apoiar empresas e startups no Brasil e no mundo, e com a Diagnext foi algo quase que por acaso. Melo lembra que apresentava sua dissertação de mestrado em Manaus, quando membros da Secretaria Estadual de Saúde o abordaram. A ideia? Usar sua tecnologia de telerradiologia no estado, que já funcionava no Rio Grande do Sul e no Mato Grosso.

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O problema era clássico: era preciso de mais gente, mais dinheiro, mais parcerias. Leonardo então começou a sondar o mercado e como ele já desenvolvia as ferramentas de telemedicina em plataformas da Intel, o time azul foi o escolhido para essa empreitada. Após 13 anos, parece que essa parceria realmente rendeu frutos para ambos os lados.

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Startup brasileira utilizou muitos modelos Intel NUC, mini-PCs da marca, nos testes e exames realizados no Amazonas (Imagem: Diagnext)

Fabiano Sabatini, Partner Sales Manager da Intel no Brasil, aponta que a Diagnext é uma parceira de nível ouro da empresa. Para possibilitar a operação da companhia, a gigante azul atuou na parceria com processadores de alta capacidade Xeon de 4ª geração, responsáveis por tarefas de alta complexidade.

Já para notebooks e computadores de trabalho mais cotidiano, Sabatini explica que a healthcare opera com processadores Alder Lake de 12ª geração. Embora não sejam os modelos mais recentes lançados pela Intel, foram CPUs que trouxeram uma nova arquitetura e ainda tem bastante gás para gastar.

“Grande parte das novas arquitetura é à prova de futuro, então elas estão prontas para que você possa trazer novas tecnologias e implementar futuramente. Isso é muito importante para que você possa prever alguns upgrades no futuro e para não precisar trocar de máquina todo ano”, comenta Fabiano Sabatini.

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Fonte ==> TecMubdo

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