Quando eu era menina, o meu pai sempre encontrava uma maneira de me contar histórias. Foi a partir delas que, pela primeira vez, eu tomei conhecimento de muitos eventos, personagens e tramas que, mais tarde, fariam com que eu me sentisse um pouco mais confiante ao estudar história, literatura, religião e filosofia.
Isso, porém, não quer dizer que as histórias do meu pai servissem de revisão de conteúdo para o que eu aprendia na escola. Pois, muito pouca coisa do que elas transmitiam figurava nos meus livros e cadernos de exercício.
No entanto, fosse ao me contar sobre Moisés, Sócrates, Descartes e Maquiavel, fosse ao me apresentar a Dom Quixote, Maurício de Nassau, Zé Limeira e as aventuras da Emília do “Sítio do Picapau Amarelo”, hoje eu percebo que, mais do que qualquer outra coisa, as histórias do meu pai me ensinaram a pensar. Talvez seja por isso que eu ainda goste tanto de escutar histórias, principalmente quando estou ansiosa ou sinto que conto com poucos estímulos para me ajudar a organizar as ideias.
Assim, em 2025, quando estive sozinha na Alemanha para trabalhar na minha atual pesquisa, desenvolvi o hábito de escutar audiolivros. Sempre ao chegar em casa da universidade ou ao sair em viagem para participar de algum evento acadêmico, eu entrava no Spotify e deixava a leitura de algum livro rolando enquanto cuidava da minha rotina.
O audiolivro que mais me acompanhou durante esse período foi “We Are Free to Change the World: Hannah Arendt’s Lessons in Love and Civil Disobedience” (2024): uma excelente biografia de Arendt escrita pela professora Lyndsey Stonebridge, da Universidade de Birmingham.
Nem eu imaginava que fosse gostar tanto assim do livro. Afinal, muitos dos eventos descritos pela autora já eram do meu conhecimento. No entanto, o fato de o texto também ser uma espécie de ensaio sobre uma experiência de leitura fez com que a escuta daquele audiolivro prendesse mais a minha atenção, transformando a sua autora em companheira da viagem.
Agora, às vésperas de embarcar para uma conferência no Reino Unido, estou escutando “Rebbe: The Life and Teachings of Menachem M. Schneerson, the Most Influential Rabbi in Modern History” (2014), de Joseph Telushkin.
Menachem M. Schneerson (1902-1994), o sétimo rebe do movimento Chabad Lubavitch, é uma das figuras mais importantes e controversas do judaísmo do século 20. Ele impulsionou o movimento Chabad, criando uma rede de emissários presentes em mais 80 países, com o objetivo de prestar assistência religiosa e humanitária a judeus, independente de grau de observância.
A história do movimento Chabad e a figura de Menachem M. Schneerson conforme descritos tanto por Telushkin quanto por Ezra Glinter em sua recente biografia do Rebe merecem uma coluna inteira. Hoje, no entanto, eu gostaria apenas de comentar uma pequena curiosidade.
Na última terça-feira, enquanto eu pedalava a caminho do supermercado acompanhada do audiolivro de Telushkin, de repente ouvi a palavra xadrez. Há semanas procuro uma espécie de anedotário sobre o jogo, sem imaginar que estava prestes a descobrir algumas histórias deliciosas justamente na biografia de um líder religioso.
Sim, o Rebe jogava xadrez e em uma das suas fotos mais conhecidas, ele e o sogro, o sexto rebe de Lubavitch, aparecem disputando uma partida. O que eu não sabia é que ele também conhecia Sammy Reshevsky (1911-1992), um dos maiores prodígios do xadrez do século passado.
Reshevsky tornou-se famoso aos 8 anos, era observante e não disputava campeonatos durante o shabat. Na década de 1980, foi convencido pelo Rebe a não se aposentar das competições. Aos 72 anos, tornou-se um dos campeões do Open de Reykjavik. Nessa mesma época, o Rebe pediu que Reshevsky tentasse tirar Bobby Fischer do isolamento, trazendo-o de volta para o judaísmo. Dessa vez, no entanto, Reshevsky não obteve sucesso.
Mas o que é que o Rebe enxergava no xadrez? Em uma prédica da década de 1940, ele comenta sobre o valor e a função de cada peça do jogo como se elas representassem a hierarquia celestial. Neste sentido, o rei e a dama, respectivamente, simbolizariam a transcendência e a imanência do divino. Já os bispos, as torres e os cavalos corresponderiam aos anjos. Por fim, na base desta hierarquia, equiparando-se aos homens, estariam os peões.
Segundo o Rebe, assim como os peões, as nossas ações podem até parecer singelas e os nossos movimentos limitados, mas eles também transformam o mundo à nossa volta. Além disso, diferentemente das demais peças do jogo, que detêm as suas funções ao longo da partida, os peões, assim como nós, humanos, são capazes de aprimoramento e progressão.
Assim que escutei esse relato, pensei imediatamente no meu pai. Pois, as histórias que ele costumava contar também transmitiam verdades e ensinamentos complexos a partir de elementos que, para mim, aparentavam ser simplesmente corriqueiros. Muito obrigada, pai. Enquanto eu for capaz de apreciar uma boa história, você estará sempre presente.
Fonte ==> Folha SP