Há algo de inquietante em assistir “7 Gatinhos” no Teatro Oficina. Não apenas pela força do texto de Nelson Rodrigues – que segue atual em sua crítica ao patriarcado – mas pela forma como a encenação nos arrasta para dentro daquele universo claustrofóbico. O espaço do teatro, com sua arquitetura que dissolve fronteiras, faz com que a plateia se torne cúmplice dos horrores da família Noronha.
Joana Medeiros, na direção e também no papel de Noronha, conduz o espetáculo com mãos firmes. Sua interpretação do pai autoritário que berra “Ninguém presta!” é um retrato acabado da violência doméstica disfarçada de moralidade. Ao seu redor, o elenco constrói personagens complexos, desde as filhas com seus desejos sufocados até a presença de Bibelô – interpretado com um charme desconcertante por Victor Rosa –, o estranho que funciona como catalisador de todas as hipocrisias familiares.
O que mais impressiona é como a peça, escrita há quase 70 anos, continua a reverberar em 2025. As dinâmicas de poder, os abusos velados, a sexualidade reprimida e a dupla moral religiosa parecem ter atravessado décadas sem perder força. A encenação não tenta atualizar artificialmente o texto – pelo contrário, deixa claro que essas mazelas continuam entre nós, ainda que com novas roupagens.
A escolha de incluir artistas como Jup do Bairro – em sua estreia nos palcos – reforça o compromisso da Companhia Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona com espetáculos que pulsam vida real. Nunca uma representação distanciada, antes um mergulho coletivo nas feridas que o texto provoca.
No final, saímos do teatro com aquela sensação característica das obras rodriguianas: um misto de repulsa e reconhecimento. “7 Gatinhos” não fala apenas sobre uma família disfuncional dos anos 1950 – fala sobre todos nós, sobre as estruturas que nos moldam e as hipocrisias que insistimos em manter.
Três perguntas para…
… Joana Medeiros
Na peça, você interpreta Noronha, o patriarca, desafiando a tradição de papéis de gênero. Como essa escolha amplia a crítica rodriguiana ao patriarcado?
Todos os homens abusivos em mim ressurgem. Minha história de 55 anos de vida, as escolhas que brotaram desse patriarcado, ou a que fui submetida, mas também os abusos que causei enquanto filha do patriarcado adoecido.
Sobre a personagem ser do gênero masculino, sou uma mulher e artista em vias de cura, aprendendo a escuta, envolta no meu corpo branco pansexual atento, ainda em processo, na sua escultura social, de gênero e raça, sinto um caminho longo: mesmo num chão como o do Oficina, cheio de revoluções e transgressões, o feminino tem, em Nelson e em “7 Gatinhos” a responsabilidade do olho aberto, da realidade dita abertamente, pelo texto em 1957 e por nós através dele em 2025.
Para mim é fundamental sentir na pele, através desse texto, a violência desse patriarcado, para me curar de qualquer concessão, com a confiança na integridade das palavras certeiras como flechas de Nelson, para que, nossa obra e o público se decidam de uma vez por todas a reconhecer e recusar essa forma obsoleta e apodrecida de patriarcado: decisão sem volta nem trégua para todes!
A peça aborda a sexualidade feminina de forma crua. Como atualizar essa discussão para os debates contemporâneos sobre gênero?
A peça me pergunta: como renascer e desfrutar de um feminino em todos os corpos, matando o patriarcado abusivo? Nelson mata literalmente os tês homens: o jovem cafetão Bibelô, o velho pai incestuoso Noronha e o medico pedófilo obstetra Bordalo; o quarto homem é ferido de guerra e não tem sexo!
Quantas escolhas diárias o feminino tem que enfrentar na sua delicadeza e firmeza, sem concessões nem firulas, e no entanto numa concepção abrangente da união pós gênero do feminino, no renascimento da Xamã telúrica corpo/alma/sexo. A escolha na peça vai se dando aos poucos, a sexualidade “usada pelo masculino” vai sendo ressignificada e afirmada quadro a quadro: a grandeza da Revanche do Feminino (tema usado por nós na elaboração dos ensaios), se apresenta integralmente, mais do que somente a queda do patriarcado. Acredito, como diretora, nesta concepção dos quadros da peça. Nelson não nos traz cenas, traz quadros, são plasticidades, é cinema, tempo não linear, tempo/memória: “são os fatos, os fatos!
O Teatro Oficina é conhecido por dissolver fronteiras entre palco e plateia. Como esse espaço dialoga com a claustrofobia da família Noronha?
A grande claustrofobia dessa peça para mim é a descoberta da pesquisa de todos os tipos de abuso que o autor meticulosamente lista, (eu sinto Nelson investigando os crimes pessoais de todos os tipos de abuso possíveis numa só obra, por isso o impacto dela em cena).
A princípio se vê o abuso do feminino, mas o masculino se mostra abusado e exausto também através do abuso social: quando o contínuo (Noronha) diz “não vou mais servir cafezinho nem água gelada a deputado nenhum!”; o abuso da falta de cumplicidade entre as irmãs, o abuso racial que também aparece no texto: “faz de graça parto de negra”; a pedofilia, juntamente com o abuso médico, político, psicológico, emocional, físico e espiritual.
Em “7 Gatinhos” no Teatro Oficina percorremos as galerias atrás do público que se encontra envolto na trama; conseguimos crescer a casa no subúrbio do Rio, do texto do Nelson, em um grande cortiço do Bixiga, trazendo a bateria jovem da Vai-Vai desde a rua, na fila da bilheteria, até a introdução do nosso enredo. Comemos o Bixiga assim como Nelson come o crime e Zé come a tragédia orgiástica candomblaica!!! Axé!
Teatro Oficina – rua Jaceguai, 520 – Bela Vista, região central. Ter. e qua., 20h. Até 20/8. Duração: 150 minutos. A partir de R$ 35 (meia-entrada) em sympla.com.br. Morador do Bixiga: R$ 25 (compra presencial na bilheteria, mediante a comprovante de endereço em próprio nome, um ingresso por comprovante). A bilheteria do teatro abre com 1h de antecedência ao espetáculo.
Fonte ==> Folha SP